Desde o surgimento do “novo sindicalismo”, passando pela Constituição de 1988 e percorrendo praticamente toda a década de 90, a Justiça do Trabalho no Brasil tem sido motivo de polêmica e debate por parte de diferentes setores da sociedade civil e do governo. Inseridas no âmbito da discussão recente de transformações do modelo de relações trabalhistas no Brasil, ecoam manifestações das mais diversas ordens: opiniões divulgadas pela grande imprensa, documentos oficiais, propostas de emenda constitucional, documentos sindicais, pareceres jurídicos, etc. A extinção ou manutenção do poder normativo, a criticada morosidade no tratamento dos processos, os obstáculos que sua existência coloca à livre negociação entre empregados e empregadores têm sido, com maior ou menor ênfase, os pontos em torno dos quais as críticas tem sido formuladas. Numa outra perspectiva, tem sido apontado o papel relevante que, para a população em geral, a Justiça do Trabalho desempenhou historicamente no país na constituição do que se pode chamar uma “cultura de direitos”, que se fundamenta no conhecimento e reivindicação dos direitos trabalhistas consagrados na CLT.
No atual contexto de propostas de mudanças institucionais na esfera trabalhista, têm recebido especial destaque na mídia aquelas vinculadas à Justiça do Trabalho. As propostas apresentadas têm provocado manifestações de vários segmentos da sociedade - lideranças sindicais patronais e de trabalhadores, políticos, advogados e membros do Poder Judiciários - constituindo um campo de lutas, alvo de disputa de modelos diferenciados de sociedade e de institucionalização das relações capital/trabalho no Brasil, como mostra CARDOSO, 1999.
A questão de fundo deste texto é, portanto, a da análise das mudanças institucionais no plano das relações de trabalho no Brasil, entre as quais se incluem as iniciativas referentes à definição (nos anos 1930 e 1940) e redefinição (dos anos 1990 em diante) do papel da Justiça do Trabalho. Pretende-se, nesse sentido, contribuir para a reflexão em torno da história da instituição, sem perder de vista o debate sobre sua relevância social no passado, no presente e no futuro.
1. A fundação dos direitos no Brasil
A criação de espaços jurídicos voltados para a regulação e o controle das relações de trabalho tornou-se, à medida que avançava nossa experiência republicana, uma imposição. Espelhados e referidos a instituições já em vigor em outros países, esses espaços foram de forma lenta e como resultado de disputas sociais e exercício de vontade política, se configurando até constituir uma ampla rede institucional de alcance nacional.
O processo tem início com a produção de várias leis isoladas no sentido de regular procedimentos e garantir direitos mínimos aos trabalhadores. Dentre esses instrumentos legais, pode-se destacar, em 1891, o decreto que regulou o trabalho do menor; em 1903, a lei de sindicalização rural; em 1907, a lei que regulou a sindicalização de todas as profissões. O primeiro projeto de Código do Trabalho, de Maurício de Lacerda, tentativa mal-sucedida de reunir e sistematizar a legislação pertinente, é de 1917. Em 1918, Lacerda aprovou na Câmara o projeto do Departamento Nacional do Trabalho, órgão que acabou substituído pelo Conselho Nacional do Trabalho, em 1923. De 1919 é a Lei sobre acidentes de trabalho.
No plano propriamente jurídico, a
literatura sobre o tema sugere que as primeiras
funções de “Justiça do Trabalho” no Brasil couberam aos
Tribunais Rurais do Estado de São Paulo. Instituídos
pelo então governador Washington Luiz, em 1922, estes
órgãos destinavam-se a dirimir conflitos entre patrões
e colonos, decorrentes principalmente dos efeitos da
imigração e da presença de trabalhadores estrangeiros
mais politizados. Três anos depois é o mesmo Washington
Luiz que, vai propor em sua plataforma de candidato a
Presidente, a regulação de funções das Juntas de
Conciliação e Julgamento, a serem entregues a
“magistrados, cuja independência e cuja imparcialidade,
inerentes e essenciais ao cargo, serão abonadoras da
independência e imparcialidade das decisões” ( MORAES
FILHO, 1982).
Após a Revolução de 30, acelera-se o processo de
regulação e monta-se o arcabouço da nova estrutura que
irá gerir as relações de trabalho nacionais - embora
com sucessivas alterações e adaptações - por muitas
décadas. Em 30 mesmo, cria-se o Ministério do
Trabalho. No mesmo ano instala-se o novo Departamento
Nacional do Trabalho junto ao qual, em 1932, passam a
funcionar as Comissões Mistas de Conciliação (6
representantes de trabalhadores, 6 de patrões) para
conciliar impasses coletivos, e as Juntas de
Conciliação e Julgamento (1 representante de
trabalhadores, 1 de patrões, 1 bacharel) com poderes
de julgar as questões trabalhistas individuais. CASTRO
GOMES, 1979, entre outros autores, demonstrou
amplamente como, durante toda a década de 30, foram
promulgadas várias leis no plano das relações de
trabalho, assumindo o Estado a “primazia incontestável
do processo de elaboração da legislação social”, embora
“sem deixar de ouvir e até certo ponto atender às
demandas formuladas pelos interesses de classe” e
expressas no rico debate político e parlamentar da
época.
A Constituição de 34 finalmente
institui a Justiça do Trabalho (Título IV, art. 122)
“para dirimir questões entre empregadores e
empregados, regidas pela legislação social” que
assegura então o estatuto da pluralidade sindical e a
completa autonomia dos sindicatos, regula a jornada
diária (8 horas) e outros vários direitos, reconhece
as convenções coletivas. A composição dos Tribunais de
Trabalho e das Comissões de Conciliação devia obedecer
ao princípio de eleição paritária de representantes de
patrões e empregados, com presidente indicado pelo
Governo.
Em outubro de 1935, Agamenon Magalhães, então
Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio, submete ao
exame e aprovação do Presidente, um anteprojeto de
organização da Justiça do Trabalho, elaborado por
técnicos do Ministério, pelo seu Consultor Jurídico,
Oliveira Viana e pela Procuradoria do Trabalho, e
acompanhado de ampla exposição de motivos.
Após mais de um ano, em 1 de dezembro de 1936, o Presidente finalmente encaminha mensagem ao Poder Legislativo para apreciação do anteprojeto. A mensagem é imediatamente remetida à Comissão de Constituição e Justiça e distribuída ao seu presidente, Waldemar Ferreira, como relator. Este apresentou seu parecer em 9 de março de 1937, dias depois do deputado Barreto Pinto apresentar o mesmo anteprojeto - destacado da mensagem presidencial - como projeto de sua iniciativa. Passando por deliberação, o projeto foi aprovado em primeira discussão mas recebeu mais de 100 emendas na segunda, e sobre elas a Comissão de Justiça ministrou novo parecer. Discutidos os dois pareceres, foram as conclusões encaminhadas à Comissão de Legislação Social.
O golpe de Estado de novembro de 1937, porém, dissolve a Câmara dos Deputados antes que a Comissão de Legislação Social terminasse seu trabalho. A Constituição de 37 mantém a Justiça do Trabalho, mas introduz mecanismos de enrijecimento da estrutura sindical e de seu controle, como a unicidade, o imposto compulsório, o enquadramento sindical. Em março de 38, é publicado novo projeto de lei orgânica da Justiça do Trabalho.
Regulada em 39, regulamentada em 40, em 1º de maio de 1941 inaugura-se finalmente a Justiça do Trabalho, em solenidade promovida por Getúlio Vargas no campo do clube Vasco da Gama, no Rio de Janeiro. Era constituída por um Conselho Nacional do Trabalho, por oito Conselhos Regionais e por 36 Juntas de Conciliação e Julgamento em todo o país (MORAES FILHO, op.cit.).
No âmbito do Ministério do Trabalho, como Justiça Administrativa, a instituição guardava as características de um modelo protecionista e tutelar do trabalhador. MORAES FILHO (op. cit.), atribui a Oliveira Viana, um dos autores dos projetos que redundaram em vários decretos-leis e decretos naqueles anos, a inclinação por processos com o mínimo de burocracia, justiça gratuita, rapidez e concentração processual, além de "amplos poderes ao juiz como dominus litis absoluto, poucos e nominados recursos”. É essa Justiça, ainda com sua natureza jurídica pouco definida, quem irá controlar, a partir de 1943, o cumprimento da Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT.
Só na Constituição de 1946 a Justiça do Trabalho torna-se efetivamente parte do Poder Judiciário, autônoma em relação ao Poder Executivo em todos os níveis, com competência específica, poder normativo, e Ministério Público correspondente junto ao Ministério Público da União. Sua organização classista, sua competência, entretanto, não se alteraram, e continuaram as mesmas, pelas décadas seguintes, só vindo a sofrer alguma alteração em anos recentes .
2. O debate atual
Não constitui novidade a associação que se construiu na cultura política brasileira entre direitos sociais e idéia de cidadania. Entretanto, diversos e importantes estudos de cientistas sociais e historiadores têm assinalado que, no Brasil, a “ordem” com que os direitos integrantes da noção de cidadania se implantaram não seguiu o paradigma clássico europeu (direitos civis, políticos e sociais). Mais do que isso, na nossa história, a centralidade dos direitos sociais, absolutamente vinculados aos direitos trabalhistas, originou-se de uma experiência vivenciada durante os anos 1930-40, quando a noção de cidadania foi firmemente associada ao gozo de direitos sociais consagrados pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e amparados pela Justiça. Nesse sentido, alguns trabalhos recentes têm mostrado que a Justiça do Trabalho ainda é uma referência importante para os trabalhadores em geral. Assim, MATTOSO E POCHMANN, 1999, e POCHMANN, 1998, demonstraram que dentre as características do sindicalismo nos anos 90 está o aumento dos processos - individuais e coletivos - ajuizados na Justiça do Trabalho , a despeito de todo o movimento contrário a isso nos anos 80. Para estes autores, tal aumento se deve ao desemprego crescente bem como às dificuldades colocadas pelos patrões à negociação . Não se trata, porém de um movimento isolado: SUPIOT, 1999, observa que existe hoje na Europa uma tendência acentuada de controle jurisdicional dos conflitos trabalhistas; este autor vê aí a manifestação de uma evolução no que diz respeito ao papel de juiz nas sociedades ocidentais que pode acarretar uma modificação profunda do direito das relações coletivas de trabalho.
Nesta linha, diversos autores têm se debruçado sobre o Judiciário na consolidação de regimes democráticos constitucionais (CITTADINO,2000; ARANTES, 1999), especialmente no que diz respeito à proteção de direitos. Assim, o estudo da chamada judicialização da política tem, por um lado, chamado atenção para a expansão do poder das cortes judiciais e, por outro, para uma nova relação institucional entre os poderes. No mesmo sentido, SANTOS, 1996, tem discutido os novos papéis assumidos pelos tribunais nas sociedades contemporâneas, enfatizando tanto suas diversas funções políticas quanto as dimensões simbólicas a eles associadas, de garantia de igualdade formal, de imparcialidade e possibilidade de recurso por parte dos cidadãos. Mais recentemente, estudos como os de WERNECK VIANNA, 1997, e SADEK, 1995, 1995a, 1997, 1999, têm contribuído de maneira relevante para desvendar o Poder Judiciário, bem como para desenhar um perfil social e ideológico de seus principais atores.
O debate em torno da reformulação da Justiça do Trabalho, que, desde os anos 1990 se expandiu tanto por parte de setores governamentais quanto por parte de segmentos expressivos da sociedade civil, tem estado freqüentemente associado a teses e políticas públicas que se opõem a qualquer forma de regulamentação das relações de mercado, especialmente às que se referem ao mercado de trabalho. As premissas e propostas se orientam no sentido da flexibilização das normas trabalhistas ou mesmo de sua supressão, lançando as relações de trabalho no campo das negociações diretas entre empresariado e trabalhadores, com a retirada do Estado. Tais debates e transformações nas formas de pensar e operar as relações de trabalho no Brasil constituem uma nova e profunda ruptura em relação ao modelo que se estabeleceu a partir dos anos 1930-40. AMADEO E CAMARGO, 1996, por exemplo, defendem que a Justiça do Trabalho deveria ser substituída como locus da negociação de conflitos, produzindo-se a negociação a nível de firmas, com a participação dos sindicatos. Ora, tal proposta não leva em conta a extrema heterogeneidade em termos de poder de barganha dos sindicatos brasileiros bem como a escassa participação sindical nos locais de trabalho. É verdade que MATTOSO E POCHMANN, 1999, observam que nos anos 90 os acordos e convenções de trabalho se caracterizaram por sua natureza mais descentralizada e por se realizarem ao nível da empresa. Mas argumentam também que esta descentralização e pulverização das negociações não têm significado uma maior organização dos trabalhadores por local de trabalho e que pode implicar, isto sim, em uma acentuação da heterogeneidade de remunerações e condições de trabalho.
2.1 As Centrais Sindicais
As três Centrais Sindicais mais importantes não têm
permanecido alheias ao debate. Já observávamos no fim
dos anos 90, uma relativa concordância em relação à
implantação de novas práticas de arbitragem que
agilizassem soluções para os conflitos trabalhistas
fora do âmbito da Justiça do Trabalho. Segundo o
presidente da CUT à época, Vicente Paulo da Silva, o
Vicentinho, o modelo de comissões de arbitragem ou da
figura do árbitro “será um novo patamar para resolver
as questões de conflitos e divergências trabalhistas,
mais avançado e adaptado aos novos tempos”. O então
presidente Paulo Pereira da Silva, do Sindicato dos
Metalúrgicos de São Paulo, principal pedra de
sustentação da Força Sindical, achava, por sua vez que
“Não tem mais sentido recursos à Justiça do Trabalho, o
que onera a todos” e não resolve “as milhares de
reclamações cotidianas dos trabalhadores” como as “22
mil (...) protocoladas “ em seu Sindicato no início de
1998. Igualmente a CGT, através de seu presidente à
época, Enir Severino da Silva, defendia a importância
de ampliar a discussão sobre o tema.
Embora tais posições pareçam ter se amenizado à
medida que os efeitos continuados do quadro de retração
de empregos se fizeram sentir sobre a capacidade de
negociação dos sindicatos nos primeiros anos do século
XXI, revalorizando a proteção da lei, as principais
Centrais Sindicais mantiveram alguma expectativa de
criar alternativas ou restringir a ação da Justiça do
Trabalho.
O acompanhamento das recentes discussões, ocorridas
durante os trabalhos do Fórum Nacional do Trabalho,
permitiu identificar os pontos de convergência e
divergência entre as posições dos atores sindicais
representantes dos trabalhadores expressadas durante o
processo. Por outro lado, a pesquisa cobriu também as
manifestações do autodenominado Fórum Sindical dos
Trabalhadores (FST) , que funcionou autonomamente em
relação à representação sindical no FNT.
Nesse sentido, foi possível destacar as posições das
duas principais centrais sindicais (CUT e FS)
representadas no FNT e também a do FST, em relação aos
pontos que, na proposta de reforma, dizem respeito ao
papel da Justiça do Trabalho.
Pontos principais das propostas da CUT, da FS e do FST para a Reforma Sindical no Brasil
Negociações e conflitos
Central Única dos Trabalhadores
(CUT) ü Extinção da dispensa imotivada (conv. 158 da
OIT);ü Direito de negociação coletiva para os
servidores públicos;ü Garantia da ultratividade das
cláusulas das convenções e dos acordos
coletivos;ü Criação das comissões de conciliação
prévia - CCPs;
Força Sindical (FS) ü Extinção da dispensa imotivada
(conv. 158 da OIT);ü A possibilidade de serem
realizados acordos individuais entre sindicatos e
empresas.
Fórum Sindical dos Trabalhadores (FST) ü Revisão de
jurisprudência realizada pelo TST;ü Manutenção das
datas-base das categorias profissionais;ü As
negociações coletivas deverão ser realizadas pelo
sindicato representativo da categoria, podendo ser
realizadas em nível estadual e nacional, pelas
federações e confederações, com preservação dos acordos
locais;ü Pela criação do conceito de
ultratividade;ü Ampliação do poder de fiscalização do
Ministério do Trabalho e a garantia de que a entidade
negociante participe da fiscalização;ü Extinção da
dispensa imotivada ( conv. 158 da OIT);ü Extinção das
comissões de conciliação prévia -CCPs;ü Criação do
direito de greve e que a Justiça Trabalhista não
julgue as greves em curso;ü Direito de negociação
coletiva para os servidores públicos;ü Livre forma de
organização, por categoria ou carreira
pública;ü Direito de greve aos servidores públicos.
Fontes: CUT, FS, FST e Fórum Nacional do
Trabalho.
Uma breve análise desse quadro revela que, com
matizes diferentes, a Central Única dos Trabalhadores
e a Força Sindical, a primeira através de Comissões
Prévias de Conciliação, a segunda via acordos
individuais entre sindicatos e empresas, propõem
processos de negociação coletiva fora do âmbito da
Justiça do Trabalho. Já o FST, representando em grande
parte a postura da CGT, propõe a extinção das
Comissões Prévias de Conciliação, enfatiza o caráter
coletivo das negociações e sugere apenas restringir a
intervenção da Justiça do Trabalho nas greves em
processo.
2.2 Os magistrados do trabalho
Advogados, procuradores, juízes e suas organizações de classe, como a Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas, a Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho e a Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho também se manifestaram com frequência em torno das questões relativas a mudanças no papel do judiciário trabalhista, e a oportunidade da elaboração da proposta de Reforma Sindical pelo FNT trouxe à tona mais uma vez o debate. De maneira geral os operadores do direito defendem a preservação de várias das funções tradicionais da Justiça do Trabalho, ainda que a questão do número crescente de processos seja uma dificuldade sempre lembrada. Neste sentido, parece haver hoje uma tendência por parte dos Tribunais Superiores de valorização da negociação coletiva como forma de composição dos conflitos. Isso tem se manifestado pela extinção da quase totalidade de dissídios que chegam ao TST sem demonstração da exaustão das negociações prévias ou a legitimação dos sindicatos, mediante assembléias gerais (MARTINS FILHO, 1998), o que poderia apontar para o eventual esvaziamento do poder normativo da Justiça do Trabalho.
Até a presente etapa da pesquisa, foi possível acompanhar, no caso mais específico dos magistrados do trabalho, parte do debate interno da categoria, através das principais manifestações de suas associações – a nacional, ANAMATRA e algumas regionais, as AMATRAS - mas também com base em algumas entrevistas com juízes e em trabalhos da comissão sobre “Reforma Sindical” reunida durante o Congresso Nacional dos Magistrados do Trabalho - o CONAMAT- de 2004.
Embora a ANAMATRA tenha participado
do FNT apenas através de um representante/observador,
sem direito a voto, ela manifestou-se freqüentemente,
e de maneira crítica, sobre alguns pontos da reforma
sindical. Entre os pontos da proposta do FNT
salientados pelos juízes, e referendados em relatório
de uma reunião realizada em 19-20 de fevereiro de 2004
em Belo Horizonte, Minas Gerais , alguns se destacam
especialmente.
Em relação à estrutura sindical, os juízes defendem
por um lado o primado da legitimidade de sindicatos e
Centrais, com critérios legais de controle, e base de
sua ação na defesa dos direitos e interesses
coletivos, difusos e individuais homogêneos. Por outro
lado, rejeitam a unicidade sindical e a possibilidade
de declaração do monopólio de representação pela lei
ou pelo próprio sindicato.
Quanto à negociação coletiva, propõe que ela se dê
livremente, conduzida democraticamente pelo sindicato
de maior representatividade comprovada. São favoráveis
à representação dos trabalhadores na empresa, à
organização nos locais de trabalho, com a participação
do sindicato. Concordando com a posição de todas as
Centrais, defendem a ultratividade dos contratos.
Reiteram também firmemente a necessidade de
preservação dos direitos trabalhistas assegurados na
Constituição da República.
No que se refere ao direito de greve, o documento
igualmente rejeita a chamada Lei de Greve ( Lei
7.783/89) e suas restrições. Aqui também admitem um
certo limite à competência da Justiça do Trabalho,
“para as hipóteses em que houver greve em atividades
essenciais e estiverem em jogo as necessidades
inadiáveis da comunidade”, e defendem que seja vedada
a contratação de trabalhadores durante a greve,
inclusive terceirizados.
Finalmente o relatório sugere a extinção do poder
normativo da Justiça do Trabalho, “condicionado à
aplicação concreta das demais propostas”. Espera-se a
criação de um contexto mais democrático em que haja “um
certo equilíbrio entre os envolvidos” na negociação
trabalhista.
Outras preocupações quanto a alterações do papel da
Justiça do Trabalho, são também formuladas pelo
representante da ANAMATRA na Plenária do Fórum
Nacional do Trabalho, juiz Márcio Túlio Viana, quando
expressa suas críticas à proposta de Reforma Sindical
finalmente acordada. Em um texto divulgado pela
Associação Nacional , o magistrado começa por
destacar a tendência de centralização no movimento
sindical brasileiro, com ampliação do poder das
centrais sindicais, "órgãos de cúpula” do sistema,
manifestando seu temor em relação à sobrevivência do
monopólio de representação para os sindicatos
existentes até às vésperas da nova lei. O juiz
acredita que, embora a proposta fale em opção, é pouco
provável que as assembléias sindicais escolham a
pluralidade.
O magistrado questiona igualmente o que ele denomina
de formalização da representação, acreditando que o
sindicato “não abrirá as suas portas para as multidões
crescentes de trabalhadores sem vínculo de emprego”.
Afinal, quanto à negociação coletiva, “ponto-chave
da reforma”, o juiz chama atenção para alguns dos
possíveis efeitos da diminuição dos mecanismos de
regulação das relações de trabalho, já que considera
que “na medida em que os patamares legais diminuírem,
o sindicato irá ganhando um papel maior, em termos
quantitativos, mas menor, em termos qualitativos, no
campo da negociação”.
Por sua vez, o Congresso Nacional dos Magistrados do Trabalho de 2004 constituiu-se em oportunidade privilegiada de observação da posição dos juízes. Estiveram presentes magistrados dos vários níveis de atuação: das varas de trabalho de todo o país, dos tribunais regionais e do Tribunal Superior do Trabalho . A sessão final do Congresso contou também com a participação do Presidente do Supremo Tribunal Federal.
Entre as comissões constituídas para a apresentação e defesa das teses a serem posteriormente votadas em Assembléia Geral para, se aprovadas, nortearem os trabalhos da Associação, a comissão sobre Reforma Sindical propiciou o encaminhamento de questões sobre o relatório do FNT.
A própria listagem das teses
apresentadas na referida Comissão demonstra o leque de
preocupações dos juízes e juízas do trabalho. Versavam
elas sobre:
- novos paradigmas para a regulação do trabalho por
negociação coletiva, para garantir direitos básicos aos
trabalhadores autônomos;
- liberdade e autonomia sindical plenas, ficando
assegurada a competência da Justiça do Trabalho para
inibir as condutas anti-sindicais e dirimir
controvérsias entre os distintos entes de
representação dos trabalhadores, quando haja
controvérsia acerca da legitimidade;
- repressão mais eficiente dos atos anti-sindicais e
um meio processual rápido e uma tipificação criminal
específica para esses casos;
- reforma da organização sindical baseada no
conceito de categoria e de unicidade e dependente da
contribuição obrigatória de todos os trabalhadores
empregados, que impede o desenvolvimento da democracia
participativa através da negociação coletiva;
- estabelecimento da garantia de que sindicatos
possam contar com um número de diretores por critério
de proporcionalidade, observando-se base territorial e
número de integrantes da categoria, como garantia
efetiva de representação e para fins exclusivos de se
auferir o direito à estabilidade prevista no art. 8o ,
VIII, da Constituição Federal;
-crítica à proposta de "estrutura sindical" do FNT
que: permite o pluralismo, mas como punição para os
sindicatos que não aderirem ao estatuto padrão feito
pelo Conselho Nacional de Relações de Trabalho; fala
em contratação coletiva com cláusulas que limitam os
sindicatos de base negociarem; fala em fim do imposto
sindical quando se pretende mantê-lo de forma
controlada;
-generalização da sentença possibilitando que a
individualização dos substituídos –representados pelo
sindicato- se processe em fase de liquidação de
sentença;
- fim do poder normativo da Justiça do Trabalho.
Todas essas teses, com exceção da última, foram aprovadas e encaminhadas à Assembléia Geral, que as referendou. Tal movimento reforça, sem dúvida, alguns dos principais pontos anteriormente destacados pela representação dos magistrados, na defesa da liberdade e autonomia sindical, da efetiva pluralidade, da contribuição voluntária aos sindicatos –o fim do imposto sindical. Além disso, e apesar de optarem pela manutenção do poder normativo, os juízes presentes ao CONAMAT admitem algum tipo de limitação das funções da Justiça do Trabalho, como externam ao se referirem à negociação coletiva, que desejam democrática, mas protegida contra condutas anti-sindicais e controlada em termos da legitimidade de representação das partes.
3. Considerações finais
Como se pode observar, as posições sobre o papel a ser desempenhado pela Justiça do Trabalho no contexto das propostas de reforma do modelo de relações de trabalho em nosso país têm variado bastante. Em consonância com o debate que cortou a história recente, hoje é possível identificar uma tendência, por parte de amplos setores do sindicalismo, no sentido de criar formas alternativas de negociação coletiva e de arbitragem dos conflitos, ou até mesmo de possibilitar acordos específicos entre trabalhadores e empresas. No entanto, nunca é demais registrar que, por outro lado, alguns setores minoritários reagem às mudanças e defendem a manutenção das prerrogativas do judiciário trabalhista em nome da garantia dos direitos.
Por parte dos magistrados, o que se observa com mais freqüência é a defesa das funções atuais da Justiça do Trabalho e até mesmo de sua capacidade de “legislar”, via poder normativo. No entanto, setores expressivos têm defendido –porque consideram necessária e já viável a autonomia dos atores das relações de trabalho frente à intervenção do Estado- o progressivo redimensionamento de seu papel e a concentração crescente na dimensão mais propriamente judicante de seu trabalho
De toda forma, o debate está colocado e os pontos de sua pauta em grande parte explicitados. Assim, o maior ou menor papel concedido ao Estado e mais especificamente à Justiça, o lugar atribuído à lei na hierarquia de normas sociais, o papel das instituições na configuração do mercado de trabalho e direitos de cidadania, o reconhecimento dos sindicatos enquanto órgãos de representação legítima de interesses coletivos, acabam se apresentando - quando se avizinham as reformas trabalhista e sindical do governo Lula - como dimensões centrais dessa disputa, na sociedade e entre os atores envolvidos.
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